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01

CABEÇA DE ALHO

Todo despertar é fruto da infelicidade.

Tomas, especialista em ocultismo, dividia seus dias entre negociar favores com entidades e se esconder do mundo em seu apartamento, tendo somente as visitas forçadas de sua irmã para quebrar a rotina. Contudo, um chamado inesperado de seu chefe o obriga a assumir um contrato para desvendar o suposto assassinato dos pais de Ana dos Santos, uma adolescente de linhagem nobre.

 

Durante a investigação, se depara com situações, tanto deste quanto do outro lado da matéria, que põem em prova suas convicções e dão a entender que talvez haja alguma verdade por trás das crenças da adolescente. Que preço terá essa verdade?

the film
02

Capítulo 1

PUTA MERDA. Dez e vinte. Toda vez é a mesma coisa, pensou Tomas. Me despenco de Realengo até a Lagoa de ônibus e ele ainda se atrasa.

O desperto esperava sentado em um banco público virado para a lagoa. Com exceção de um ou outro esportista noturno, somente os carros quebravam o silêncio. O frio carioca fez os pelos de seus braços se arrepiarem. Respira. Piscou com calma ao apertar a cabeça de alho em seu bolso. Tem gente demais aqui. Vai dar tudo certo.

Outro trabalho no escuro. Isso quer dizer que ele tem vergonha do que fez. Algo pessoal. Endireitou a coluna e sorriu de meia boca. Não faz sentido. Todo novo contrato o cliente faz questão de me contar cara a cara o que aconteceu. Como se isso fosse mudar a minha opinião.

Escolheu um banco que beirava a rua, embaixo de uma árvore. O mais escondido que conseguiu. Contudo, as folhas só lhe permitiam ver o que vinha da sua direita. Os poucos carros que passavam tinham mais de dois anos de uso, quase todos com insulfilme. Tanta vontade de mostrar o carro e tanto esforço para esconder o motorista. Os prédios seguiam um padrão diferente. As fachadas eram todas cinza ou bege, construções antigas, coladas umas nas outras, cada uma se esforçando para ser mais insossa que a próxima. Tudo para proteger seu precioso estilo de vida.

O bairro de classe alta não representava muito perigo. As ruas eram bem iluminadas e as patrulhas policiais frequentes. Respira, soltou o ar pelo nariz. Não é como se essa sua cara de mendigo convidasse um ladrão. Se alguma coisa chegar, tem que ser do outro lado. Franziu o cenho. É melhor ficar de costas para o trânsito e de frente para a água. De olho na água. Se alguma coisa aparecer, tem que ser de lá. Apertou mais uma vez a cabeça de alho, rachando a casca.

Calma, Tomas! Cadê o cigarro? Tateou o interior de seu bolso. Debaixo do celular. Em um movimento quase inconsciente, colocou o tabaco na boca e o acendeu. Alho! O gosto do vegetal veio junto com a fumaça. Merda de amuleto, estalou a língua nos dentes. Tem que estragar a porcaria do meu fumo, bufou. Não importa, e colocou o cigarro na boca.

Encheu os pulmões de uma vez e sentiu sua nuca formigar de alívio. O ronco do motor dos carros passando começou a soar como música para o desperto. A lembrança constante de que havia pessoas por perto. A lagoa é cercada de prédios. Tem muita gente aqui. Não vai acontecer nada, tentou se acalmar, mas em momento algum tirou os olhos da água.

Passaram-se outros doze minutos e dois cigarros até que Nando apareceu. Seus passos podiam ser ouvidos de longe e sua aparência fazia jus à profissão. Vinte e poucos anos, forte, moreno de pele e pelo, e roupas muito mais justas do que deveriam. Tudo nele gritava micheteiro.

– Fala, cara! – Nando forçou um sorriso. – Foi difícil chegar aqui?

– Não. Cheguei dez minutos mais cedo – respondeu, seco.

– É. Foi mal pela demora. – Contraiu o rosto. – Teve um acidente lá em Copa e parou tudo.

Um acidente parou tudo às dez horas da noite? E o celular também está sem bateria?, pensou, mas meneou a cabeça e apenas disse:

– Não importa, Nando. O importante é que você chegou. Para que exatamente estou aqui?

– Cara – coçou a nuca –, tem uma coroa que é cliente minha que sempre pagou pau pra mim, sacou? E, pô, de uns tempos pra cá, ela tá dizendo que me ama. – Tentou esconder o sorriso, que morreu logo em seguida. – Mas aí ela engravidou e tá dizendo que o filho é meu.

– Ok, vamos começar pelo começo. – Fixou os olhos no micheteiro e falou com o máximo de calma que conseguiu: – O filho é seu?

– Acho que é. – Mordeu o lábio.

O imbecil do michê nem sabe se engravidou a coroa. Levantou o queixo.

– Presta atenção que isso é importante. Você tem certeza que o filho é seu?

– Tenho.

– Perfeito. – Levantou o queixo. – Há quanto tempo foi isso? Que ela engravidou.

– Cara, sei lá – falou entredentes. – Você vai fazer o ritual ou não?

Tomas encheu e esvaziou seu peito devagar e encarou o michê.

– Eu quero que você preste bastante atenção no que vou dizer agora, ok? Não fui eu quem engravidou sua cliente. – Deu um passo à frente. – A culpa dessa cagada não é minha. Eu estou aqui para resolver o que você fez. E quanto mais você me ajudar, mais rápido a gente termina isso. – Limpou a garganta. – Eu preciso saber há quanto tempo ela está grávida, porque é no quarto mês que a alma entra no feto, o que faz com que o ritual seja outra parada. Além de tudo, vai ter um exorcismo no meio. Do que, vai por mim, você não vai querer fazer parte. – Fechou os olhos e respirou fundo mais uma vez. – Agora, quando foi que você engravidou ela?

– Dois meses. – Desviou o olhar. – Dois meses e meio.

– Certo. – Assentiu com movimentos curtos. – A cerimônia vai ter que ser realizada onde foi feita a concepção. Você consegue me levar até lá?

– Foi no apartamento dela. Isso é mole. Eu chego lá a hora que eu quiser. Foi na sala ou no quarto. – Enrugou o queixo. – Acho que foi no quarto.

– No apartamento já é o suficiente. – Ergueu a palma da mão para o micheteiro. – Alguma coisa fora do comum que você percebeu no dia? Alguma decoração nova? Comportamento estranho?

– Olha, fazia alguns meses que ela quase não me chamava para transar. – Seus olhos quicavam entre o rosto de Tomas e o chão. – A gente ficava só na conversa. Mas aí, há uns três meses, a gente começou a fazer direto. Três, quatro vezes por semana.

A gravidez foi planejada. Má notícia. Esfregou a nuca com a mão direita.

– E proteção? Você estava usando? Eu imagino que seja comum no seu ramo.

– Cara, teve um dia que ela pediu pra eu dar uma segunda, mas nem eu nem ela tínhamos outra camisinha. – Estufou o peito. – Eu nem queria, mas ela insistiu e disse que ia me dar um extra. Aí eu não pude negar fogo.

Moleque idiota, pensou. Raspou a unha no amuleto.

– Ok. Eu preciso de meia hora para comprar o resto dos ingredientes. – Umedeceu os lábios. – A grávida vai ter que estar próxima do ritual. Então você vai ter que distrair ela enquanto faço a cerimônia. Ela não precisa estar no mesmo quarto. É até melhor se ela não estiver.

– Pô, cara, como você quer que eu faça isso? – Engrossou a voz.

Tomas fechou os olhos por alguns segundos.

– Se vira. Declara seu amor, come ela, troca figurinha. Sei lá! Contanto que eu possa fazer meu trabalho em paz, sinceramente não me importo. – Respirou fundo em uma longa pausa. – Faz o seguinte, a gente entra junto no prédio dela e você dá a desculpa de que quer conversar enquanto eu espero no corredor. Quando estiver mais calmo, você abre a porta pra mim e eu faço o que tenho que fazer. Pode ser?

– Tá. – Os olhos do micheteiro estavam colados no chão. – Você que ir junto ou a gente se encontra lá?

– A gente se encontra lá. – E se virou em direção à rua. – Só mais uma coisa, qual o nome dela?

– Rute. – Fez uma pausa. – Rute Andrade.

O prédio ficava a mais ou menos dez minutos da rua principal, na segunda esquina, no meio de uma ladeira. Não foi uma subida fácil. Depois do sexto ou sétimo minuto, Tomas teve que empurrar os joelhos. Seus pulmões ardiam toda vez que tentava levantar a cabeça. Só mais um pouco. O suor já chegava à sua lombar e à sacola de plástico com o material para o ritual, que parecia cada vez mais pesada. O topo da ladeira era um pouco mais fresco, o que ajudava. Começou a contar seus passos da forma mais rítmica que conseguiu, como se isso fizesse com que a caminhada doesse menos.

– Tomas! – gritou Nando, a pouco mais de dez metros.

O micheteiro estava encostado no muro entre um prédio e outro. Tinha penteado o cabelo e trocado a camiseta estampada por uma camisa social preta ainda mais apertada do que a anterior, especialmente no braço. Assim que o viu, Tomas começou a andar em direção à entrada, sem tirar as mãos do bolso.

A construção não tinha mais de seis andares, e, apesar da fachada bege, conseguia se destacar de seus vizinhos. Toda a base do prédio, incluindo a entrada social e a garagem, era de vidro espelhado que seguia pelas varandas. As sacadas eram grandes e sinuosas, todas cobertas por plantas. Embora o prédio da frente tapasse quase toda a vista, com um pouco de esforço era possível ver as ruas de baixo surgindo por trás da vegetação.

– Você já falou com ela? – perguntou Tomas, ainda encurvado, se esforçando para controlar a respiração.

– Tipo, falei. – Os olhos de Nando se arregalaram. – Eu vou fazer o seguinte: vou entrar falando que quero conversar. Você espera do lado de fora. – Gesticulava em movimentos bruscos. – Assim que der, vou levar ela para o quarto e, quando ela estiver preparada, eu dou uma desculpa para sair e abro para você.

– Perfeito. – Cuspiu o pouco de saliva que tinha. – A cerimônia precisa de quinze minutos para ser feita. Ela não pode sair nesse meio-tempo.

– Tranquilo. – Sorriu, debochado. – Eu trabalho com isso. – Seu rosto se contraiu mais uma vez. – Mas, pô, cara, eu estava pensando, e o porteiro?

– O que que tem o porteiro? – Tomas não tentou esconder a impaciência.

– Será que ele não vai desconfiar? – Encolheu os ombros. – Assim, foi mal, cara, mas você não parece michê. Tipo, o cheiro de alho e tudo mais.

É isso que dá. Acariciou a base de sua barriga. Não é como se eu tivesse ajudado a melhorar o que a natureza já entregou ruim. Esforçou-se para esticar o tronco.

– O porteiro não vai achar nada. Você não vem aqui com frequência? Então ele já te conhece. – Ergueu as palmas das mãos. – Entra e fala que vai para o apartamento dela. Simples assim.

– Pelo menos dá uma penteada no cabelo. – Estendeu um pente que tirou do bolso.

– Você leva um pente no bolso? – perguntou o mais sério que conseguiu, enquanto lutava para passar o pente pelos cachos molhados de suor.

– Cada profissão tem uma ferramenta. – Sorriu, perverso. – Um pente no bolso é menos ridículo do que uma cabeça de alho.

Um sorriso forçou caminho através do rosto de Tomas.

– Justo. – Devolveu o pente. – Estou bonito o suficiente para o porteiro?

– Se eu fosse você, eu nem oferecia, porque eu acho que ele não resiste. – Sorriu. – Mas só tem uma maneira de descobrir. – Arrumou as mangas dobradas da camisa. – Vamos?

O desperto olhou para dentro da sacola de ingredientes mais uma vez, repassando a lista e assentindo a cada item contado. Velas, cachaça, leite, bife… Perfeito.

– Depois de você. – E apontou para a porta.

Nando apertou o interfone e uma voz feminina atendeu.

– Quem é? – A pergunta soou rouca e lenta.

– Rute, sou eu – respondeu o micheteiro com um tom mais grave que de costume.

A réplica veio seca, depois de alguns segundos.

– Pode subir. – E a porta abriu com um estalo.

A entrada do prédio era um cômodo bem iluminado, que se estendia até quase metade da profundidade total da construção. As curvas de fora davam lugar a linhas retas nas paredes e móveis. Dois conjuntos de sofás com duas poltronas cinzas alinhados perfeitamente em noventa graus com a parede mais próxima preenchiam o lugar. Do lado direito, o porteiro continuava dormindo em cima de seus braços, sem se importar com quem entrava ou com a televisão de tubo ligada ao seu lado. No fundo, em frente ao portão de entrada, havia uma porta de madeira com uma placa escrito “Social”.

Caminharam em direção ao elevador. Somente o som da televisão quebrava o silêncio. Nando ruminava e encarava os próprios pés. Perfeito, pensou Tomas. Ele está em dúvida. O elevador começou a descer assim que apertaram o botão. Terceiro. Segundo. Primeiro. Térreo. Só mais um pouco e termina. Empurrou a porta para entrar e as palavras forçaram saída.

– Você tem certeza de que quer fazer isso? Depois que eu terminar não vai ter mais volta.

Nando fez uma careta, fitando os próprios pés.

– Cara, tem que ser. Tipo, como esse moleque vai crescer? Eu ser michê, eu trepar por dinheiro ou como eu engravidei a mãe dele, por incrível que pareça, é a parte mais tranquila. – Olhou de canto de olho para Tomas. – Você conhece alguma história de um desperto feliz? Então… eu não quero trazer uma criança para isso.

– Isso vai ter um preço – avisou, sem desviar o olhar.

– Eu já paguei para o Ignácio – respondeu em tom de desafio.

– Eu sei, ele me falou – coçou a bochecha –, mas o que você está pedindo é um acordo de morte e, com ele, sempre vem uma porrada forte. Por mais que o Ignácio amenize ou pegue para ele, alguma coisa vai resvalar em você. Sempre resvala.

– É a minha vida, beleza? Eu sei o que que eu tô fazendo.

– Você é o contratante. – Deu de ombros. – Só para deixar claro, eu não vou te esperar. Assim que terminar, eu vou embora. E no entardecer do terceiro dia, o aborto acontece, ok?

– Eu não esperava outra coisa. – E saiu do elevador.

Tomas continuou dentro do elevador com o ouvido perto da porta, sem deixá-la fechar. Ouviu a mesma voz do interfone a pouco mais de quatro metros de distância.

– Nando, você avisou que vinha faz uma hora. Já é quase meia-noite! – O tom era uma mistura de bronca e lamento.

– Desculpa o atraso, gatinha – disse, meloso. – Teve um acidente lá em Copa e parou tudo. Mas eu preciso conversar contigo, me deixa entrar.

A resposta demorou alguns segundos outra vez.

– Tá bom, mas tem que ser rápido.

O desperto ouviu o som da porta batendo e saiu de seu esconderijo. O corredor tinha quatro portas, duas em cada extremidade, três delas brancas como as paredes e uma da cor da madeira crua. Na porta de Rute, abaixo do olho mágico, havia uma pomba do Espírito Santo.

Seus joelhos estalaram ao sentar no chão de mármore. Fechou os olhos e respirou fundo. Um, dois, puxa. Um, dois, solta. O foco estava todo em sua respiração. Um, dois, puxa. Um, dois, solta. O alho que o protegia do lado de lá agora o impedia de ver além do véu. Um, dois, puxa. Sentiu a ponta dos dedos dos pés formigar e o ar esticar atrás de suas orelhas. Um, dois, solta. Abriu os olhos.

Tudo à sua volta ficou esfumaçado e fora de foco. Respirar agora era como puxar vapor, todos os sons soavam ocos. Contudo, todas as coisas continuavam em seu lugar, o que era de se esperar de um lugar como aquele. Gente demais. Bom. Olhou em volta à procura de algo fora do comum. Conseguiu ver que o casal de vizinhos da porta de madeira tinha um cachorro que marcou todo o apartamento como seu território e que a mulher criava uma barreira de espinhos entre ela e o marido. O apartamento de trás quase não tinha rastros no além-véu. Eles acabaram de se mudar, constatou. Desviou o olhar quando viu que Nando e Rute já estavam sem camisa, mas não percebeu nada perigoso escondido do outro lado, e um alívio desceu de sua nuca até as pernas. Ainda bem.

Fechou os olhos. Um, dois, puxa. Um, dois, solta. Seus poros se contraíram. Um, dois, puxa. Um, dois, solta. Apertou o alho em sua mão. Um, dois, puxa. Sentiu o peso de suas pernas contra o chão e o rodapé contra a base de sua coluna. Um, dois, solta. Abriu os olhos e tudo voltara a ser sólido.

A espera pareceu longa. Pegou-se tentando raspar uma mancha esverdeada no rodapé quando finalmente ouviu a porta ser destrancada e se esforçou para se levantar.

– Entra, cara – disse o micheteiro, com pressa. Estava completamente nu, com uma almofada vinho cobrindo sua pélvis.

Tomas passou de lado pela porta, se esforçando para não tocar no contratante.

– Onde é a cozinha? – sussurrou. Assim que Nando apontou a direção, continuou: – Lembrando que eu preciso de quinze minutos sem interrupções.

O micheteiro se virou e voltou para o quarto. Apesar de ser um apartamento grande, todo o espaço parecia tomado. Tapetes de várias cores e estampas cobriam quase todo o piso de madeira. Metade das paredes era pintada de branco e a outra metade de grená, e todas as arestas eram rombudas. Em cima dos móveis, quase todos de madeira e couro, ficavam estatuetas de metal barato, que alguém um dia chamou de arte. Os quadros conseguiam se sobrepor ao resto da decoração.

O desperto sentiu o cheiro do perfume de Rute. Doce. Ela se arrumou para ele. Sentiu seu estômago embrulhar. Apertou a sacola com os ingredientes na mão direita e foi em direção à cozinha.

A cozinha era surpreendentemente neutra. Todos os azulejos eram brancos, e os armários, de madeira. A única exceção era a geladeira, cheia de ímãs coloridos. Nenhum deles parecia ter menos de dez anos. Tomas colocou a sacola na pia e começou a recontar os itens. Velas, cachaça, leite, bife. Tudo estava ali.

 

Conseguiu encontrar uma bacia de tamanho decente em um dos armários embaixo da pia. Lavou com calma as mãos e o rosto, acendeu as duas velas no fogão e levou tudo para a sala.

Escolheu um lugar relativamente vazio, mais ou menos no meio da sala. Sentou-se no chão e colocou a bacia na sua frente. Pegou as duas metades da cabeça de alho em seu bolso e as colocou atrás de seu corpo, ainda ao alcance das mãos. Pôs uma vela de cada lado, tomando cuidado para que elas ficassem firmes. Assim que firmou a segunda, ouviu jazz vindo do quarto. Garoto esperto, isso vai facilitar as coisas. Travou o abdome e levantou o pedaço de carne até a altura de sua testa. É agora.

Fechou os olhos. Um, dois, puxa. Um, dois, solta. Desceu o bife em movimentos controlados e colocou suas mãos sobre ele. Um, dois, puxa. Enterrou seus dedos na carne. Um, dois, solta. Sentiu o ar arranhar sua pele e abriu os olhos. A sala continuava quase a mesma, porém as velas brilhavam como faróis e o cheiro da carne empesteava o cômodo.

Pegou a caixa de leite e, pouco a pouco, derramou seu conteúdo no recipiente até cobrir todo o bife cru.

– Kramór Iriná Anê. Kramór Iriná Anê. Eu, Tomas Fontes, chamo o Guardião das Trilhas em seu manto negro e peço permissão para ser ouvido. Meu pedido vem de um desperto que deseja intervenção em seu domínio. Ele quer perder o filho que está por vir, pois somente infelicidade pode resultar dessa vida. Quebre a corrente que une estas pessoas. – Segurou a garrafa de cachaça e a levantou até o peito. – Filho da noite. Eu te invoco. E que assim seja! – Derramou metade da aguardente.

Uma escuridão profunda caiu sobre o cômodo. Mesmo a luz das velas, que antes brilhava como farol, agora mal chegava à base. Cinco metros à frente de Tomas apareceu o espírito. Seu rosto magro e pálido ficava a mais de dois metros do chão. Não tinha pelos nem lábios, o nariz aquilino pairava sobre seu eterno sorriso. Pescoço e ombros esqueléticos brotavam de seu crânio, mas era somente isso que a escuridão permitia enxergar. Passo a passo, a criatura foi se aproximando.

Cada vez que o espírito movia as pernas, o som de suas unhas raspando no chão dava lugar ao som oco de suas patas firmando o passo. Um terceiro barulho de algo se arrastando abria espaço até o ouvido do desperto. A besta sorria e lambia os dentes com sua língua roliça e, toda vez que a trocava de lugar em sua boca, uma salpicada de baba grossa voava para o canto de seu rosto.

– Eu o invoco para tirar o filho de Rute Andrade. – Controlou a vontade de desviar o olhar. Tinha que encarar a criatura. – O ritual é feito por mim e comandado por Ignácio Batista. – Dois metros agora. O guardião começava a se abaixar. – Kramór Iriná Anê. – Um metro. A criatura tinha começado a rastejar. Seu sorriso macabro ondulava sem tirar o foco de Tomas. – Kramór Iriná Anê. – Meio metro. O espírito cheirava a ferrugem. O desperto enterrou suas mãos na carne do ritual para não pegar a cabeça de alho às suas costas. – Kramór Iriná Anê!

Face a face agora. Seus olhos eram globos escarlates vazios, salpicados de branco. O guardião encostou bochecha com bochecha. O ar chiava entre seus dentes. As mãos frias de Tomas afundaram no leite. Um gemido rouco e lento foi seguido por um sussurro.

– Oferenda aceita.

Tomas saiu do transe em um salto, agarrando as duas metades de alho. Sem pensar, deu um bom gole na cachaça, coçou os olhos e colocou seus cabelos ensopados de suor para trás. Os ingredientes da bacia tinham se transformado em sangue, que agora estava em seu rosto e cabelos. Puta merda. O ritual estava finalizado. Uma comichão desceu por sua coluna. Graças a Deus. Sem cerimônia, apagou as velas, pegou os ingredientes e se levantou. Suas mãos tremiam ao carregar o que restou para a cozinha. Estava exausto.

Despejou o sangue na pia e começou a esfregar o contêiner com força. Ouviu Rute gemendo no quarto e sentiu sua garganta fechar. Perfeito. Limpar o sangue da bacia foi relativamente fácil se comparado a tirá-lo dos cabelos, e depois de alguns minutos estava tudo feito. Deu mais uma bicada na aguardente e o resto foi para a sacola.

Passou os olhos mais uma vez pela cozinha e pela sala para ver se não tinha esquecido nada. Os gemidos ficavam cada vez mais altos. Tinha que sair dali. Cambaleou em direção à saída do apartamento e, no momento em que abriu a porta, ouviu um grito mais forte que os outros, seguido de silêncio, e fechou-a.

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